O Projeto

DADOS SOCIODEMOGRÁFICOS

 

Diante do cenário de invisibilidade que afeta às comunidades situadas no Território de Identidade de Irecê (doravante TII) fomos inquietados a trazer uma caracterização geral dessas comunidades, tornando acessíveis ao público dados inéditos que ainda de forma incipiente têm mobilizado a população civil e grupos políticos a perceberem a existência e resistência das Comunidades no e do TII.

O Projeto ELiHS teve acesso a algumas comunidades e pode vivenciar de perto o enfrentamento à falta de acesso a serviços básicos de saúde, educação, transporte, bem como uma base agrícola familiar presente nas Comunidade e a partir de então passamos a entender aquelas Comunidades como espaço de vida e resistência dos seus membros que lutam para terem acesso e permanecerem na terra, e ainda, é notável o campo como espaço de produção material e simbólica das condições de existência, de construção de identidades.

Com os avanços legais e normatizadores, no Território de Irecê existem atualmente 151 Comunidades com certidões de autorreconhecimento expedidas pela Fundação Cultural Palmares, entretanto apenas 52 estão com processo de regularização fundiária em aberto no INCRA, e nenhum título de domínio já expedido no território (atualizado em 16.05.2022, através do site do INCRA). Esses dados são um alerta em relação a possíveis entraves que existem na/para atuação do INCRA no que tange ao cumprimento do já amplamente estabelecido em diversas disposições legais, fazendo-se de suma importância refletirmos sobre quais e os porquês das dificuldades encontradas no processo que leva ineficácia da devida titulação das terras quilombolas do território – um convite às pesquisas sociológicas e antropológicas.

 

Com indica Mattos e Silva (2004) aqui tentaremos apresentar, ainda de forma generalizada, dados sociodemográficos que favoreçam a compreensão do contexto atual dessas comunidades que ainda são rigorosamente marcadas pela segregação social, resistência e luta pela sobrevivência, que atravessa a história dos negros e afrodescendentes no território brasileiro, em especial, no Território de Identidade de Irecê.

Mesmo inseridos numa sociedade compreendida enquanto contemporânea, as comunidades rurais afro-brasileiras do TII representam relação social, política e simbólica que liga seus membros à sua terra, e consequentemente favorece a construção de sua identidade cultural, construindo um modo de vida particular. Assim, podemos afirmar que apesar de nos autointitularmos enquanto sociedade moderna, engajadas em um processo contínuo de transformação histórica, temos muitas comunidades, a citar as afro-brasileiras do Território de Identidade de Irecê, que se apresentam e constroem sua identidade dentro de um sistema conservador.

Dados levantamos a partir do Projeto ELiHS apontam a existência de comunidades afro-brasileiras, em localizadas majoritariamente em espaços rurais, certificadas pela Fundação Cultural Palmares enquanto remanescentes quilombolas, em 19 municípios do Território de Irecê, não sendo computado apenas o município de Ipupiara. São 151comunidades distribuídas entre 19 municípios do Território.

Importante relembrar que os dados a serem apresentados derivam da pesquisa realizada, eletronicamente (via Google Forms), no âmbito do Projeto ELiHS, entre os anos de 2020 e 2021, em que foi possível coletar informações sociodemográficas em um conjunto de 109 comunidades das 151 certificadas pela Fundação Cultural Palmares.

Cientes que a constituição legal da Associação é indispensável para o andamento do processo de regularização fundiária pelo INCRA foi possível identificar que 91,6% das Comunidades estão organizadas em Associações, compreendendo essas como uma forma de organização política e social que possibilita o diálogo e o trabalhado coletivo, através de membros representativos. Os dados podem ser melhor observados no Gráfico 1.

 

Gráfico 1 – Quantitativo de Associações nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

Os dados apresentados são apenas representativos, mas fica o alerta para as Comunidades que representam os 8,4%, e que não sabem quais os processos protocolais para a criação dessas Associações: A Comunidade não possui associação, a maioria dos moradores desejam ter orientações” (Representante de Sertão Bonito – João Dourado). Que vozes como essa, da Comunidade Sertão Bonito, ecoem nas esferas públicas, na tentativa de medidas interventivas, já que a representação através de Associações favorece um movimento mais forte e combativo que passa a pensar na valorização do sujeito, na cultura popular e na sua identidade enquanto remanescente quilombola, além de uma organização que favorece a aquisição de políticas públicas e a promoção do respeito aos direitos humanos tão urgentes neste contexto de grupos que estão em condição de vulnerabilidade social.

Em relação ao número de habitantes temos comunidades que registram 10 (dez) habitantes (a exemplo de Garapa, em América Dourada), e 02 (dois) mil habitantes (a exemplo de Prevenido, também em América Dourada), chegando ao uma média geral de 321 habitantes/comunidade. A catalogação dos dados nos permite afirmar que seus membros compõem predominantemente a faixa etária de adultos (entre 31 e 59 anos), com 73,6%, seguidos dos jovens (entre 18 e 30 anos), com 10,4%, adolescentes e crianças, com 8,5%, e idosos com apenas 7,5%, conforme Gráfico 2.

 

Gráfico 2 – Quantitativo da proporção por grupos etários nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

Entrecruzando os dados sociais com as pretensões linguísticas deste Projeto abrimos o parêntese para o fato de termos apenas 7,5% dos membros numa faixa etária a partir de 60 anos, sendo que a idade é uma das supercategorias sociais para os estudos sociolinguísticos, e suas implicações nos estudos quantitativos correlaciona-se diretamente com o processo de mudança linguística e, intuitivamente, com a preservação de traços indicadores de possíveis contatos linguísticos.

Um outro dado estatístico que trazemos aqui é em relação a autoafirmação dos membros enquanto negro e/ou afrodescendentes, tendo no TII um surpreendente quantitativo de comunidades que se autodeclaram enquanto remanescentes de quilombolas, mas que não se autodeclaram enquanto afrodescendentes (cf. Gráfico 3).

 

Gráfico 3 – Quantitativo das Comunidades que se autodeclaram enquanto negro e/ou afrodescendentes no TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

Os números apresentados contribuem para uma reflexão em relação à forte (re)produção dos estereótipos que nascem e resultam de/em fortes práticas de exclusão às pessoas negras, fruto de uma origem histórica que beneficia grupos esbranquiçados e por meio dele constrói um suposto poder hegemônico com relação ao restante da sociedade, instrumentalizando o racismo por meio do imaginário social, em uma sociedade multirracial e mestiçada.

Ainda em um contexto de autorreconhecimento da identidade cultural de seus povos – quilombolas – temos dados que apontam que 88,2% comungam com os princípios da igreja católica, 3,7% com princípios de religiões de matriz africana (Candomblé e Umbanda) e 4,6% com igreja Evangélica, com 3,6% com outras religiões.

 

Gráfico 4 – Quantitativo das religiões predominantes nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

Os dados apresentados nos Gráficos 3 e 4 fornecem subsídios para importantes discussões em torno do conceito de identidade, atrelado aos modelos ditados pela sociedade contemporânea, visto que Hall (2003, p. 13) afirma que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”.

As Comunidades são categorizadas neste Projeto como [-] informatizadas, visto que 11,2% não possuem acesso telefônico, somando à 41,1% que possuem com difícil acesso.

 

Gráfico 5 – Acesso telefônico nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

Em relação ao acesso à internet, temos 11,2% das Comunidades sem nenhum tipo de acesso, somando a 31,8% com registo que apenas menos de 50% da população/membros possuem acesso[1], evidenciando quantitativamente um uso ainda restrito da internet, configurando a exclusão desse grupo étnico em ambientes digitais. Em contexto de pandemia do novo Coronavírus também se questiona o acesso desses adolescentes a espaços escolares que desde março de 2020 têm trabalhado de forma remota – mais um convite a pesquisas.

 

Gráfico 6 – Acesso à internet nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

A ausência da escola no campo é um outro dado que merece destaque, visto que tem se con do como um fator que favorece o êxodo rural e consequente aumento da taxa de urbanização, bem como a falta de perspectiva para o viver no e do campo. No TII temos, supreendentemente, 48,6% das Comunidades sem escolas, conforme Gráfico 7, favorecendo o baixo índice de escolaridade de seus membros, apontado no Gráfico 8.

 

Gráfico 7 – Níveis de ensino nas Comunidades do TII

 

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

As Comunidades que compõem o Território de Identidade de Irecê têm escolas que atendem no máximo o Ensino Fundamental II (10,3%), normalmente o Ensino Médio (0,9%) acontece como extensão do colégio que se encontra na sede do município. É um dos dados que revela a concentração da vida social na sede do município e/ou o baixo nível de escolarização, como uma matriz que fortalece a lógica do inchaço urbano, do êxodo rural e da falta de perspectiva para o viver no e do campo. Os dados apontam que o panorama histórico da educação escolar brasileira na sua vertente rural nos deixou como herança um quadro de precariedade no funcionamento da escola no/do campo, tanto em relação à infraestrutura e aos espaços físicos inadequados quanto a má distribuição das escolas no espaço geográfico.

 

Gráfico 8 – Quantitativo de pessoas/membros que concluíram o Ensino Médio nas Comunidades do TII

Fonte: Elaborado pelo Projeto ELiHS.

 

 

Os dados apontam que apenas 0,9% das Comunidades registram que 100% de seus membros concluíram o Ensino Médio, em contrapartida 66,0% registam que menos de 50% de seus membros concluíram o Ensino Médio. Como relatado anteriormente, a ausência de escolas e o fato do Ensino Médio, em sua grande maioria, ser uma extensão dos colégios que se encontram na sede do município, favorece e explica os baixos índices de escolaridade.

Diante dos quantitativos apresentados é possível, ainda preliminarmente, visualizar um desenho social das Comunidades do TII, que mesmo diante das prerrogativas normativas ainda são invisibilizadas pelo poder público local, que não possui registros algum sobre esse grupo étnico tão representativo em sua constituição territorial. Portanto, os ainda incipientes dados quantitativos aqui apresentados são um convite à pesquisas, das mais diversas perspectivas teóricas, para que seja possível colaborarmos para constituição e um retrato não apenas sociolinguístico, mas também social, cultural e histórico, dando visibilidade a contextos, como este apresentado, que esteja “para além do litoral”, numa perspectivava de interiorização.

“[...] Laus Deo, que Deus seja louvado; porque o trabalho, a meu ver, será muito, de muitos e não será por pouco tempo.” (MATTOS E SILVA, 2008, p. 30).

 

 

 

[1] Muitas das Comunidades, por estarem distantes de suas sedes, possuem apenas a opção da internet via rádio, ainda de alto custo ao se comparar a renda dessas famílias e apresenta muita instabilidade na conexão à rede.